Bem‑vindas e bem‑vindos ao episódio 13 do Foco Acessível. Hoje temos a honra de receber a PhD em acessibilidade digital e inclusão, empreendedora e pesquisadora Virgínia Chalegre — que traz mais de 25 anos de atuação em TI, testagem, qualidade de software e acessibilidade. Vamos explorar como ela fundou a empresa t-access, como o desafio do teste com pessoas cegas se tornou um divisor de águas em sua carreira, e como hoje ela orienta equipes e empresas a construir experiências digitais inclusivas, que vão além da conformidade legal.
Se você é desenvolvedor, designer, tester ou lidera produto, prepare‑se para dicas práticas sobre como aplicar empatia no ciclo de desenvolvimento, envolver pessoas com deficiência desde o início, focar em resultados efetivos — não apenas checklists — e preparar seu time para os desafios técnicos da acessibilidade, inclusive no contexto emergente da inteligência artificial.
Junte-se a nós nesta conversa inspiradora e informativa sobre o futuro da tecnologia acessível! E não se esqueça de acessar os links e à transcrição desta conversa e nos seguir nas redes sociais: LinkedInInstagramTikTokBluesky E se você tiver alguma sugestão ou feedback, adoraríamos ouvir de você - participe e contribua para tornar o mundo um lugar mais acessível e inclusivo para todos.
Índice do episódio
- 00:00:00 – Abertura do episódio
- 00:00:27 – Autodescrição de Wagner
- 00:01:06 – Apresentação da convidada (bio resumida)
- 00:01:29 – Autodescrição de Virgínia
- 00:01:55 – Pergunta 1 — História da carreira / Como começou na acessibilidade
- 00:07:34 – Pergunta 2 — O que mudou no mercado em 14 anos
- 00:15:47 – Pergunta 4 — Erros principais das empresas ao implementar acessibilidade
- 00:23:54 – Pergunta 5 — Resultados tangíveis de projetos inclusivos
- 00:32:32 – Pergunta 6 — Presença da pessoa com deficiência mudando o ambiente
- 00:34:02 – Pergunta 7 — Como é ocupar espaços de liderança sendo mulher
- 00:40:05 – Pergunta 8 — Conselhos para mulheres que estão entrando na área
- 00:45:44 – Pergunta 10 — Impacto de políticas públicas para pessoas com deficiência
- 00:49:54 – Pergunta 11 — Por que as leis de acessibilidade não saem do papel
- 00:52:59 – Pergunta 12 — Habilidades essenciais para trabalhar com acessibilidade
- 00:54:07 – Pergunta 13 — Inteligência artificial e acessibilidade
- 00:59:18 – Pergunta 14 — Indicações de sites, profissionais e iniciativas
- 01:00:22 – Pergunta 15 — Como entrar em contato com a Virgínia
- 01:05:03 – Encerramento
Links do programa
- Virgínia Chalegre: LinkedIn e o livro Teste de acessibilidade: Uma metodologia de teste de acessibilidade em ambientes web
- t-access: site, Instagram e LinkedIn
- Tarciana Katter: LinkedIn
- CESAR School e Universidade de Aveiro
- Movimento Web para Todos
- Porto Digital
- Vueling e A Vueling multou 90.000 euros por não cumprir as condições de acessibilidade para pessoas com deficiência em seu site
- LEGO
- FACEP
- FAPESP
- WCAG 2.2 (Web Content Accessibility Guidelines)
- Lei Brasileira de Inclusão (LBI)
- Lei de Acessibilidade Digital (Decreto 5296/2004)
- European Accessibility Act
- Marcelo Sales: LinekdIn, Guia WCAG e 3º episódio do Foco Acessível
Wagner Beethoven: Olá a todas as pessoas! Estamos começando mais um episódio do Foco Acessível, podcast que traz profissionais que trabalham com acessibilidade e tecnologia para compartilhar suas expertises, suas dores e seus aprendizados no cotidiano do desenvolvimento de soluções digitais e analógicas. Eu sou Wagner Betoven. Sou um homem de pele branca, barba, cabelos curtos, camisa vermelha e uso óculos de lentes corretivas. Hoje eu trago uma pessoa muito especial. Ela é a potência da potência na acessibilidade: autora de livro, PhD, mestre, pesquisadora, CEO e co-founder da t-access, com 25 anos de experiência em STEM. Muito bem-vinda, Virgínia!
Virgínia Chalegre: Obrigada, Wagner! Eu sou morena, tenho cabelos na altura dos ombros, estou com uma blusa listrada preta e branca, um macacão preto e brincos grandes vermelhos. Estou muito feliz de estar aqui — finalmente conseguimos alinhar agendas!
Wagner Beethoven: Para começar, queria que você contasse como começou a tua jornada na acessibilidade.
Virgínia Chalegre: Eu fiz Ciência da Computação e nunca pensei em fazer outra coisa. Trabalhei em várias áreas: desenvolvimento, banco de dados, e em 2005 fui chamada pelo CESAR para trabalhar num projeto da Motorola, na área de qualidade de software. Lá conheci minha sócia, Taciana. A ideia da empresa começou ali, ainda bem incipiente. Em 2008 iniciei o mestrado no CIn/UFPE, focado em teste de software, e trabalhava numa empresa que fazia portais públicos. Meu chefe virou para mim e disse: “Tu vai fazer testes do portal com pessoas cegas.” E eu pensei: “Meu Deus, como é que eu faço isso?” Comecei a pesquisar, encontrei a WCAG ainda na versão antiga, pouca literatura, instalei leitor de tela e fui aprender. No dia do teste, pedi que um dos participantes tirasse o fone para eu acompanhar. Eu usava o leitor na velocidade 30; ele usava na 80 ou 90. Eu não entendi absolutamente nada. Naquele momento percebi que a única pessoa com deficiência na sala era eu — porque a falta de acessibilidade era para mim. Foi um divisor de águas. Saí dali e mandei um e-mail ao meu orientador, dizendo que ia jogar fora minha pesquisa e começar outra. Em 2009 comecei a pesquisar acessibilidade de fato.
Virgínia Chalegre: Depois fiz um curso no Rio com Mac, Leda e Horácio. Voltei e disse para Taciana: “Já sei o que a gente vai fazer. Vamos trabalhar com acessibilidade e qualidade.” Em 2011 fundamos a t-access.
Wagner Beethoven: De lá pra cá, o que mudou?
Virgínia Chalegre: Mudou que hoje existem mais pessoas falando sobre acessibilidade. Mais empresas, mais serviços. Mas a prioridade ainda é muito baixa. Antes, a gente precisava evangelizar demais para conseguir vender qualquer projeto. Hoje ainda precisa, mas menos. Ainda assim, quando falamos “acessibilidade”, muita gente pensa em rampa — não em digital.
Wagner Beethoven: E como equilibrar o lado técnico com o lado humano da acessibilidade?
Virgínia Chalegre: Sempre começo pela empatia. Mostrar como pessoas com deficiência usam o digital — leitor de tela, simulador de mouse de cabeça, lupas, etc. — transforma tudo. Quando a pessoa entende o porquê precisa fazer algo, a técnica entra mais fácil. Posso mandar abrir a WCAG 2.2 ou a NBR 17225, mas isso não toca ninguém. Quando explico que uma descrição de imagem permite que uma pessoa cega entenda aquele conteúdo, aí muda. A partir daí, profissionais de design, desenvolvimento, testagem e gestão entendem o impacto real das decisões.
Wagner Beethoven: Concordo demais. Quando eu faço um protótipo e sei que ele nasceu acessível, me dá orgulho.
Virgínia Chalegre: Um dos grandes mitos é achar que acessibilidade deixa o layout feio. Não deixa. E não precisa criar páginas separadas para pessoas com deficiência — isso é exclusão e gera um problema eterno de manutenção. Ninguém atualiza essas páginas.
Wagner Beethoven: Na tua visão, qual o principal erro das empresas ao implementar acessibilidade?
Virgínia Chalegre: “Mascarar” acessibilidade para cumprir lei. Instalar plugin de acessibilidade e achar que resolveu. A tecnologia assistiva não conversa com plugin — ela conversa com o código. Se o código não é acessível, não adianta nada. Outro erro é a falta de entendimento de que acessibilidade envolve todos os aspectos: arquitetônico, digital, comunicacional, atitudinal. E, claro, falta de priorização. Por isso mudamos nosso discurso: não falamos só de inclusão, falamos de negócio. Acessibilidade traz retorno financeiro. Pessoas com deficiência consomem, compram, fidelizam e influenciam suas redes.
Wagner Beethoven: Você falou de projetos… pode compartilhar resultados concretos?
Virgínia Chalegre: No Porto Digital fizemos um levantamento e havia 170 vagas não preenchidas para pessoas com deficiência. A justificativa era falta de qualificação. Criamos o projeto “Qualificar para Incluir”: turmas de pessoas cegas, surdas e com deficiência intelectual aprendendo teste de software. Tivemos 80 alunos; 40 foram contratados pelo mercado. Isso é um resultado tangível. O intangível é ainda maior: colocar uma pessoa cega trabalhando lado a lado com alguém que nunca conviveu com deficiência muda a cultura, o ambiente, o olhar. Outra história foi em Aveiro, num redesign de portal. Um vídeo institucional teve audiodescrição. Uma pessoa cega que trabalhava há mais de 10 anos na universidade nunca tinha “visto” o campus. Ele chorou ao ouvir a descrição. O reitor chorou. Esse impacto não dá pra medir.
Wagner Beethoven: Isso é muito forte. E a presença dessas pessoas também muda suas famílias, seu entorno — cria um efeito em teia.
Virgínia Chalegre: Exato. E muitas coisas só existem quando há pessoas com deficiência presentes. Se houvesse mais funcionários cegos na universidade, aquele vídeo acessível teria nascido antes.
Wagner Beethoven: Quero tocar num tema delicado: mulheres na tecnologia. Como tem sido ocupar esses espaços?
Virgínia Chalegre: Muitas vezes eu era a única mulher numa sala com 15 pessoas. Isso é extremamente desgastante. No começo da carreira eu vestia uma couraça: séria, fechada, não falava com ninguém, não saía para almoçar. Eu não queria ser vista como “a mulher”, mas como “a profissional competente”. Só relaxava depois de mostrar meu trabalho. Mas isso me adoecia. Eu não sou assim. Eu sou a pessoa que chega falando, vira amiga rápido. O ambiente me obrigava a vestir essa armadura para evitar descredibilização ou piadinhas. Leva anos de terapia para tirar isso. Muitas mulheres deixam a área por não querer estar nesses ambientes. Ainda há muita mudança pela frente, mas vejo avanços. A presença feminina muda o ambiente. Presença gera presença.
Wagner Beethoven: E para as mulheres que estão chegando agora? O que você diria?
Virgínia Chalegre: Não criem couraças como eu criei. Não deixem de ser vocês mesmas. Não abandonem seus planos porque o ambiente é masculino. Quanto mais mulheres entrarem, mais o ambiente muda. A mudança vem da presença, não da adaptação. O Tech Woman, por exemplo, reuniu 2200 mulheres este ano. É um evento que mostra o quanto estamos avançando. A sensação de segurança e pertencimento ali é surreal.
Wagner Beethoven: E na Europa? É muito diferente?
Virgínia Chalegre: Trabalhei em Portugal, com projetos na Inglaterra e na Dinamarca (inclusive com a LEGO). Vejo movimentos semelhantes. Proporcionalmente ao tamanho dos países, há iniciativas como o Portuguese Women in Tech. Mas a realidade é parecida: ainda somos minoria. A reunião em que eu era a única mulher era de lá, inclusive.
Wagner Beethoven: Indo para o bloco de legislação: tivemos o Censo 2022 mostrando mais de 18 milhões de pessoas com deficiência no Brasil. Como você enxerga o impacto das políticas públicas?
Virgínia Chalegre: Vejo mais investimento e exigência de inclusão. Agências como FACEP e FAPESP já incluem acessibilidade como critério. A NBR de acessibilidade digital reforça esse movimento. Mas tudo ainda anda devagar. Vejo projetos incríveis no Brasil inteiro, mas muito dispersos. Tenho tentado unir iniciativas para fortalecer políticas públicas e acelerar mudanças.
Wagner Beethoven: A LBI está completando 10 anos. A lei de acessibilidade digital é de 2004. E ainda estamos longe do ideal. O que falta?
Virgínia Chalegre: Faltam duas coisas: primeiro, lei punitiva, como o European Accessibility Act, que já começou a multar empresas na Europa. Segundo, as empresas enxergarem o ganho financeiro real. Acessibilidade é lucro. Empresas diversas são mais lucrativas. E-commerce acessível vende mais. Isso precisa entrar no discurso. A Vueling, por exemplo, levou uma multa de 80 mil euros porque o site não era acessível. Aqui ainda não temos isso.
Wagner Beethoven: E sobre profissionais: o que é indispensável hoje para quem quer trabalhar com acessibilidade?
Virgínia Chalegre: Conhecimento técnico é básico. Mas o essencial é design participativo, envolvendo pessoas com deficiência desde o início. Não é só testar no final, é construir junto.
Wagner Beethoven: E sobre inteligência artificial — risco e oportunidade?
Virgínia Chalegre: A IA aprende com o que existe. Se 97% dos sites são inacessíveis, ela vai gerar coisas inacessíveis. Um estudo mostrou que, de 88 sites criados por IA, 64 eram inacessíveis. Mas, se você orientar com WCAG, ela gera coisas muito melhores. E sempre precisa validar. Estamos lançando na t-access um validador automático com IA que, além de indicar erros, explica qual grupo de usuários é afetado e sugere o código correto usando as cores do site.
Wagner Beethoven: Estamos chegando ao final. Deixa algumas indicações para quem quer aprender mais.
Virgínia Chalegre: Indico o Movimento Web para Todos, onde qualquer pessoa pode ser voluntária. Indico seguir a t-access nas redes. E recomendo muito o Guia de Acessibilidade do Marcelo Sales, que simplifica a WCAG em cards.
Wagner Beethoven: E para quem quiser te encontrar?
Virgínia Chalegre: Estamos no LinkedIn, no Instagram (@taccess) e no site taccess.com.br. Prestamos diagnóstico de acessibilidade digital, treinamento para profissionais de TI e formação para pessoas com deficiência em teste de software e empreendedorismo.
Wagner Beethoven: Para fechar, algo que queira dizer?
Virgínia Chalegre: Sempre repito uma frase: sem heroísmos ou coitadismos. Quando a gente olha para a pessoa com deficiência como “herói” ou “coitado”, coloca ela longe da gente e tira direitos básicos como estudar, trabalhar, se divertir, ter saúde. Pessoas com deficiência têm os mesmos direitos que qualquer outra. A gente precisa mudar a perspectiva para incluir de verdade.
Wagner Beethoven: Virgínia, obrigado pela conversa. Pessoal, todos os links estão na descrição. Sigam o podcast no YouTube, Spotify e demais plataformas. Acessibilidade cedo ou tarde vai impactar a sua vida.

